quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Continuando...

.
O
DESCONHECIDO
É um divertimento agradável.
MACÁRIO
Nem mais nem menos que cuspir num poço, matar moscas, ou olhar para a fumaça de um cachimbo A minha mala (Chega à janela). Ó mulher da casa! olá! o de casa!

UMAVOZ (de fora)
Senhor!

MACÁRIO
Desate a mala de meu burro e traga-m'a aqui .
A VOZ
O burro?
MACÁRIO
A mala, burro!
A VOZ
A mala com o burro?
MACÁRIO
Amarra a mala nas tuas costas e amarra o burro na cerca.
A VOZ
O senhor é o moço que chegou primeiro?
MACÁRIO
Sim. Mas vai ver o burro.
A VOZ
Um moço que parece estudante?
MACÁRIO
Sim. Mas anda com a mala.
A VOZ
Mas como hei-de ir buscar a mala? Quer que vá a pé?
MACÁRIO
Esse diabo é doido! Vai a pé, ou monta numa vassoura como tua mãe!
A VOZ
Descanse, moço. O burro há-de aparecer. Quando madrugar iremos procurar.
OUTRA VOZ
Havia de ir pelo caminho do Nhô Quito. Eu conheço o burro…
MACÁRI O
E minha mala?
A VOZ
Não vê? Está chovendo a potes!...
MACÁRIO (fecha a janela).
Malditos! (Atira com ama cadeira
no chão).
O DESCONHECIDO
Que tendes, companheiro?
MACÁRIO
Não vedes? O burro fugiu. . .
O DESCONHECIDO
Não será quebrando cadeiras que o chamareis..
MACÁRIO
Porém a raiva...
O DESCONHECIDO
Bebei mais um copo de Madeira. (Bebem). Levais de certo alguma preciosidade na mala? (Sorri-se).
MACÁRIO
Sim . . .
O DESCONHECIDO
Dinheiro?
MACÁRIO
Não, mas...
O DESCONHECIDO
A coleção completa de vossas cartas de namoro, algum poema em borrão, alguma carta de recomendação?
MACÁRIO
Nem isso, nem aquilo. . . Levo. ..
O DESCONHECIDO
A mala não pareceu-me muito cheia. Senti alguma coisa sacolejar dentro. Alguma garrafa de vinho?
MACÁRIO
Não! não! mil vezes não! Não concebeis, uma perda imensa, irreparável... era o meu cachimbo ..
O DESCONHECIDO
Fumais?
MACÁRIO
Perguntai de que serve o tinteiro sem tinta, a viola sem cordas, o: copo sem vinho, a noite sem mulher -- não me pergunteis se fumo!
O DESCONHECTDO ( Dá-lhe um cachimbo. )
Eis aí um cachimbo primoroso. É de pura escuma do mar. O tubo é de pau de cereja. O bocal é de âmbar.
MACÁRIO
Bofé! Uma Sultana o fumaria! E fumo?
O DESCONHECIDO
É uma invenção nova. Dispensa-o. Acendei-o na vela. (Macário acende).
MACÁRIO
E vós?
O DESCONHECIDO
Não vos importeis comigo. (Tira outro cachimbo e fuma)
MACÁRIO
Sois um perfeito companheiro de viagem. Vosso nome?
O DESCONHECIDO
Perguntei-vos o vosso?
MACÁRIO
O caso é que é preciso que eu pergunte primeiro. Pois eu sou um estudante. Vadio ou estudioso, talentoso ou estúpido, pouco importa. Duas palavras só: amo o fumo e odeio o Direito Romano. Amo as mulheres e odeio o romantismo.
O DESCONHECIDO
Tocai! Sois um digno rapaz. (Apertam a mão).
MACÁRIO
Gosto mais de uma garrafa de vinho que de um poema, mais de um beijo que do soneto mais harmonioso. Quanto ao canto dos passarinhas, ao luar sonolento, às noites límpidas, acho isso sumamente insípido. Os passarinhos sabem só uma cantiga. O luar é sempre o mesmo. Esse mundo é monótono a fazer morrer de sono.
O DESCONHECIDO
E a poesia?
MACÁRIO
Enquanto era a moeda de oiro que corria só pela mão do rico, ia muito bem. Hoje trocou-se em moeda de cobre; não há mendigo, nem caixeiro de taverna que não tenha esse vintem azinhavrado. Entendeis-me?
O DESCONHECIDO
Entendo. A poesia, de popular tornou-se vulgar e comum. Antigamente faziam-na para o povo; hoje o povo a faz para ninguém .
MACÁRIO ( bebe )
Eu vos dizia pois Onde tínhamos ficado?
O DESCONHECIDO
Não sei. Parece-me que falávamos sobre o Papa.
MACÁRIO
Não sei: creio que o vosso vinho subiu-me à cabeça. Puah! vosso cachimbo tem sarro que tresanda!
O DESCONHECIDO
Sois triste, moço... Palavra que eu desejaria ver essa poesia vossa.
MACÁRIO
Por quê?
O DESCONHECIDO
Porque havia ser alegre como Arlequim assistindo a seu enterro...
MACÁRIO
Poesias a quê?
O DESCONHECIDO
À luz, ao céu, ao mar. ..
MACÁRIO
mar é uma coisa soberanamente insípida. . . O enjôo é tudo quanto há mais prosaico. Sou daqueles de quem fala o corsário de Byron "whose soul would sicken o'er the heaving wave".
O DESCONHECIDO
E enjoais a bordo?
MACÁRIO
É a única semelhança que tenho com D. Juan.
O DESCONHECIDO
Modéstia!
MACÁRIO
Pergunta à taverneira se apertei-lhe o cotovelo, pisquei-lhe o olho, ou pus-lhe a mão nas tetas
O DESCONHECIDO
Um dragão!
MACÁRIO
Uma mulher! Todas elas são assim. As que não são assim por fora o são por dentro. Algumas em falta de cabelos na cabeça os têm no coração. As mulheres são como as espadas, às vezes a bainha é de oiro e de esmalte e a folha é ferrugenta.
O DESCONHECIDO
Falas como um descrido, como um saciado! E contudo ainda tens os beiços de criança! Quantos seios de mulher beijaste além do seio de tua ama de leite? Quantos lábios além dos de tua irmã?
MACÁRIO
A vagabunda que dorme nas ruas, a mulher que se vende corpo e alma, porque sua alma é tão desbotada como seu corpo, te digam minhas noites. Talvez muita virgem tenha suspirado por mim! Talvez agora mesmo alguma donzela se ajoelhe na cama e reze por mim!
O DESCONHECIDO
Na verdade és belo. Que idade tens?
MACÁRIO
Vinte anos. Mas meu peito tem batido nesses vinte anos tantas vezes como o de um outro homem em quarenta.
O DESCONHECIDO
E amaste muito?
MACÁRIO
Sim e não. Sempre e nunca.
O DESCONHECIDO
Fala claro.
MACÁRIO
Mais claro que o dia. Se chamas o amor a troca de duas temperaturas, o aperto de dois sexos, a convulsão de dois peitos que arquejam, o beijo de duas bocas que tremem, de duas vidas que se fundem tenho amado muito e sempre! Se chamas o amor o sentimento casto e poro que faz cismar o pensativo, que faz chorar o amante na relva onde passou a beleza, que adivinha o perfume dela na brisa, que pergunta às aves, à manhã, à noite, às harmonias da música, que melodia é mais doce que sua voz, e ao seu coração, que formosura há mais divina que a dela -- eu nunca amei. Ainda não achei uma mulher assim. Entre um charuto e uma chávena de café lembro-me às vezes de alguma forma divina, morena, branca, loira, de cabelos castanhos ou negros. Tenho-as visto que fazem empalidecer -- e meu peito parece sufocar meus lábios se gelam, minha mão se esfria..
Parece-me então que se aquela mulher que me faz estremecer assim soltasse sua roupa de veludo e me deixasse por os lábios sobre seu seio um momento, eu morreria num desmaio de prazer! Mas depois desta vem outra -- mais outra -- e o amor se desfaz numa saudade que se desfaz no esquecimento. Como eu te disse, nunca amei.
O DESCONHECIDO
Ter vinte anos e nunca ter amado! E para quando esperas o amor?
MACÁRIO
Não sei. Talvez eu ame quando estiver impotente!
O DESCONHECIDO
E o que exigirias para a mulher de teus amores?
MACÁRIO
Pouca coisa. Beleza, virgindade, inocência, amor
O DESCONHECIDO (irônico)
Mais nada?
MACÁRIO
Notai que por beleza indico um corpo bem feito, arredondado, setinoso, uma pele macia e rosada, um cabelo de seda-froixa e uns pés mimosos
O DESCONHECIDO
Quanto à virgindade?
MACÁRIO
Eu a quereria virgem na alma como no corpo. Quereria que ela nunca tivesse sentido a menor emoção por ninguém. Nem por um primo, nem por um irmão Que Deus a tivesse criado adormecida na alma até ver-me como aquelas princesas encantadas dos contos -- que uma fada adormecera por cem anos. Quereria que um anjo a cobrisse sempre com seu véu, e a banhasse todas as noites do seu óleo divino para guardá-la santa! Quereria que ela viesse criança transformar-se em mulher nos meus beijos.
O DESCONHECIDO
Muito bem, mancebo! E esperas essa mulher?
MACÁRI O
Quem sabe!
O DESCONHECIDO
E é no lodo da prostituição que hás-de encontrá-la?
MACÁRIO
Talvez! É no lodo do oceano que se encontram as pérolas
O DESCONHECIDO
Em mau lugar procuras a virgindade! É mais fácil achar uma pérola na casa de um joalheiro que no meio das areias do fundo do mar.
MACÁRIO
Quem sabe!..
O DESCONHECIDO
Duvidas pois?
MACÁRIO
Duvido sempre. Descreio às vezes. Parece-me que este mundo é um logro. O amor, a glória, a virgindade, tudo é uma ilusão.
O DESCONHECIDO
Tens razão: a virgindade é uma ilusão! Qual é mais virgem, aquela que é deflorada dormindo, ou a freira que ardente de lágrimas e desejos se revolve no seu catre, rompendo com as mãos sua roupa de morte, lendo algum romance impuro?
MACÁRIO
Tens razão: a virgindade da alma pode existir numa prostituta, e não existir numa virgem de corpo. -- Há flores sem perfume, e perfume sem flores. Mas eu não sou como os outros. Acho que uma taça vazia pouco vale, mas não beberia o melhor vinho numa xícara de barro.

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